Espaço Bizarro - Seul Contre Tous (1998)


Realizado por Gaspar Noé
Com Philippe Nahon, Blandine Lenoir e Frankie Pain

"Chacun sa vie, chacun sa morale. Et si je devais résumer ma vie, ma vie elle est très simple: c’est celle d’un pauvre type."

Datada de 1998 e lançada em 1999, a primeira longa metragem de Gaspar Noé é precedida por "Tintarella di Luna" (1983), por "Pulpe amère" (1987) e por "Carne" (1991). Seguiram-se-lhe, nos quatro anos sequentes, mais duas curtas - "Sodomites" em 1998 e "Intoxication" em 2002 -, até à badalada divulgação de "Irreversible", também em 2002.

Em linha com registos anteriores, a urbe periférica constitui o cenário de "Seul contre tous" - é em habitações, estabelecimentos e arruamentos que a sociopatia retratada por Noé se manifesta. O seu veículo, um talhante ignóbil previamente retratado em "Carne" (Philippe Nahon), agride a sociedade, personificada num agregado familiar superficial e numa comunidade viciada. À admirável selvajaria retratada, retorcida, provocatória e sempre na primeira pessoa, contrapõe-se o afeiçoamento à debilitada Cynthia (Bladine Lenoir), a sua única filha, por quem ainda nutre uma centelha de afecto.
Duro e crú, "Seul contre tous" não se cinge a um mero distilar de maus-fígados. Mais do que a agressão, o homicídio ou o suicídio, ciclicamente revisitados em iras episódicas e memórias amargas, é a unívoca relação pai-filha, a sua motivação e o seu desenlace que nos induzem à reflexão pretendida por Noé, assente na visão (do mundo) de um anónimo descrente e atormentado.

O conjunto das obras de Gaspar Noé é genericamente conexo, sendo explícitas relações entre filmes, personagens e temáticas: Também a jusante "Seul contre tous" possui ecos e elos diversos, patentes na temática da violência urbana, no retrato contrastado de desvios comportamentais, na recriação de sub-culturas obscurantistas, no enfoque da decadência, ou ainda nas relações familiares e de intimidade mais atípicas. Não é por isso casuística a reaparição de Philippe Nahon no início de "Irreversible" onde, enquanto vizinho acidental de um clube gay, confessa - com ligeireza e distanciamento - causas e consequências de um passado recente que envolve Cynthia, numa óbvia alusão a "Seul contre tous". E, uma vez mais, perante a indiferença e o torpor da cidade...

Ainda que pouco unânimes - o afunilamento em torno do sexo e da agressividade é mal aceite por alguns espectadores e críticos -, Gaspar Noé e o seu "cinema de choque" conquistaram um espaço próprio no domínio da produção indie. Cada filme é, por si, minunciosamente preparado, executado e rematado. Para além da realização, Noé assume frequentemente o argumento, a edição e a direcção de fotografia. Assim se explicam o cuidado na adequação do tratamento sonoro, a montagem e o grafismo únicos, ou as emblemáticas técnicas habitualmente utilizadas, das quais a recorrente "free-flowing camera" constitui, há muito, imagem de marca.
Produzido com limitações orçamentais, parcialmente supridas pelo próprio Gaspar Noé, o premiado "Seul contre tous" (melhor filme do Sarajevo Film Festival em 1998 e do Boston Underground Film Festival em 2001) é, nessa perspectiva, o primeiro grande marco de um percurso aparentemente em construção, no qual "Irreversible" e "Into de Void" são, para já, protagonistas.

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