"Os Maias" de João Botelho: Estamos Todos

Na História do cinema português, feita de altos e baixos, de vontades políticas que levaram, primeiro, a décadas de cinema sem graça (salvo raríssimas excepções) – mesmo quando tentava ser engraçado – poucos filmes se podem considerar um acontecimento. Em toda a sua gesta, a sétima arte em Portugal tem, desde ainda os tempos do mudo, um nome de destaque, Manoel de Oliveira, que, precisamente para se destacar, teve que fugir aos «cânones» vigentes da comédia à portuguesa (onde podemos tantos filmes escolher como exemplos), sendo por isso constantemente mal criticado, olhado de lado, invejado. Famoso é, em inícios dos Anos 30, o episódio da «pateada» ao seu primeiro filme, “Douro, Faina Fluvial”, mal compreendido na estreia, e que levou um famoso dramaturgo italiano, Pirandello, presente na plateia, admirado pela qualidade da obra, a perguntar se bater com os pés era uma forma portuguesa de aplaudir. Depois, ao correr do século, Oliveira raro apoio teve para filmar, e mesmo quando o pôde fazer (“Aniki-Bobó”) era sempre criticado pelas vozes da ditadura como realizador que não enobrecia Portugal. Só já na primavera marcelista é que o decano dos cineastas portugueses pôde, com “O Passado e o Presente", voltar a filmar uma longa-metragem de ficção (se considerarmos “Acto da Primavera” um documentário ou etnoficção). 

Com a democracia, no entanto, a obra de Oliveira, e com ela o cinema português, ganham um novo fôlego, já livres das grilhetas ditatoriais que impunham o gosto. Em 1975 Oliveira filma “Benilde ou a Virgem Mãe”; em seguida essa obra-máxima do Cinema que é “Amor de Perdição” (1978) e, já em 1981, roda “Francisca”, completando assim a «tetralogia dos amores frustrados», obras ímpares e inovadoras do cinema português. A par de Oliveira, no entanto, foram surgindo outros nomes merecedores de destaque. Desde logo António Reis e Margarida Cordeiro com o seu extraordinário “Trás-os-Montes”, infelizmente um dos muitos filmes «invisíveis» do cinema português (um tema que dará para outro texto), uma obra livre que mistura ficção e documentário, lendas e história de uma das mais belas regiões de Portugal. Nos Anos 80 surge ainda João César Monteiro, que ficará para a história como o «enfant terrible» do cinema português. Pedro Costa também, que em 1989 nos traz o seu enigmático “O Sangue”. E, ao mesmo tempo, surge João Botelho que agora nos dá mais um acontecimento no cinema nacional – “Os Maias”, a partir do romance de Eça de Queiroz. 

O facto da obra mais famosa de Eça nunca ter sido adaptada ao cinema é um dos motivos para estarmos perante um acontecimento (“Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, por exemplo, foi três vezes adaptado). Além disso, este filme traz algo de novo porque se torna uma súmula, em termos estéticos e formais, de todo o grande cinema português, de todos os filmes que lhe trouxeram novidade. De facto, a grande influência que se nota nestes Maias é a de Manoel de Oliveira. Mas não é uma influência que faz João Botelho fazer um filme «à maneira» do Mestre do cinema nacional. Nota-se que Botelho soube ir buscar a Oliveira os ensinamentos necessários para encontrar o seu próprio espaço e uma linguagem própria, a sua marca cinematográfica. Desde logo, a influência é acentuada no facto de “Os Maias” serem um filme literário, maneira de filmar tão cara a Manoel de Oliveira. Apesar disso, é impossível dissociar o seu novo filme de uma certa maneira de usar com preponderância a palavra literária, tal como faz Oliveira, tendo ambos ousado realizar um texto escrito levando isso para um campo que está para além do que se pode chamar comummente «adaptação». Botelho começou mesmo a carreira por seguir de perto os passos de Oliveira quando se estreia com “Conversa Acabada”, em 1981, filme do mesmo ano de “Francisca”, e onde curiosamente o próprio Oliveira tem, como actor, uma participação especial. No entanto, ao longo dos anos, sem abdicar da matriz de Oliveira, o realizador d’Os Maias soube seguir um caminho próprio. E, após os recentes “A Corte do Norte” e “Filme do Desassossego” (filmados a partir de duas obras clássicas da literatura portuguesa, a primeira de Agustina Bessa-Luís e a segunda de Fernando Pessoa), eis que surge este novo filme a partir de Eça, um belíssimo trabalho que, desde o genérico, nos mostra que tudo o que vamos ver nas três horas de filme é o espaço próprio do cinema: a ficção, a representação filmada através de câmaras, em que o que importa é o transporte das palavras e das emoções por estas trazidas através das vozes e corpos dos actores. Os cenários - telas gigantescas pintadas por João Queiroz – são complementos para a imaginação do espectador se situar no universo do romance queirosiano. De facto, quem não consegue deixar de sentir que, apesar de ser apenas um grande cenário pintado e um fontanário como decoração, Santa Olávia, a quinta do velho Afonso da Maia, não se encontra ali em esplendor? E mesmo percebendo que o largo onde está a casa, o Ramalhete, não passa de um estúdio – que no fim se apaga, sublinhando que tudo o que vimos não passou de uma ilusão – quem se desilude com a esperança de encontrar uma verdadeira praça lisboeta oitocentista? Toda a ilusão apresentada é produto dessa técnica, que se veio a transformar em arte cheia de possibilidades, que é o Cinema. E João Botelho, neste campo, sabe como poucos dirigir um filme destes, tornando-o em algo novo.

Mas para a «magia» se completar, para se fazer real na ilusão do grande ecrã, é também preciso um contributo extraordinário dos actores que, em “Os Maias”, se encaixam na perfeição nos cenários. Com isso, parece-nos que as suas falas e modos de agir saíram directamente das belas páginas escritas por Eça de Queiroz. Com naturalidade, com graça, trazem aos leitores d’ Os Maias um rosto para os personagens imaginados durante as horas de leitura – obrigatória ou não – deste clássico da literatura. Afonso da Maia, por João Perry, Carlos Eduardo e Maria Eduarda, por Graciano Dias e Maria Flor (estes dois actores praticamente desconhecidos), transportam com os corpos e vozes a tragédia do romance de Eça para o ecrã sem nunca caírem no ridículo das tantas vezes exageradas ou telenovelescas interpretações que vão surgindo em tanto cinema, português ou estrangeiro. Outras personagens, algumas delas que entraram num espaço próprio do imaginário literário e social português, como Dâmaso Salcede (Hugo Mestre Amaro no filme) mostram a mestria com que João Botelho soube trazer "Os Maias" ao grande ecrã. Ao vermos Dâmaso, o mais pedante e mesquinho dos personagens do romance de Eça, vemos de facto a personagem balofa e irritante sempre a exclamar «chique a valer» que desde o século XIX foi dado como exemplo de oportunismo. Mas também é assim com os Gouvarinhos, os amigos do Ramalhete. Todos os actores souberam ler o texto queirosiano e transformá-lo num corpo cinematográfico. Porém, se todos eles se destacam, seríamos injustos em não considerarmos como o «primus inter pares» das interpretações do filme a personagem de João da Ega, trazida ao grande ecrã por Pedro Inês. Raras são as interpretações assim excepcionais no panorama do cinema, em que o filme, se tivesse falhado (o que, sublinhe-se de novo, não é o caso), valeria pela efusividade com que Pedro Inês «lê» o Ega. Está nele, absolutamente, o diletante, o confidente de Carlos da Maia, o personagem que no fundo sabe que vai falhar a vida mesmo antes de a ter falhado. É um corpo de actor que se transforma e que dança pelo filme fora, trazendo-lhe o encanto próprio do que Eça imaginou quando criou, em papel, esta espécie de seu alter-ego.

É nesta junção de cenários e interpretações que João Botelho traz para o cinema mais um clássico, apesar de agora esse clássico ser “Os Maias”, talvez a par do já referido "Amor de Perdição" o romance mais lido do século XIX português. É um texto que permanece actual, que continua actual e se actualiza na percepção da sociedade e dos seus actores. Alguém afirmou – ou talvez seja uma geral constatação – que é nos clássicos que está o nosso cerne. Ao filmar neste século XXI "Os Maias", parece que a pergunta que João Botelho faz aos espectadores é, à maneira de Tomasi di Lampedusa, se foi preciso que tudo mudasse para que as coisas ficassem na mesma. De facto, quem por aí não conhece um Dâmaso Salcede bajulador e falso? Ou até um Ega, que literariamente tanto promete mas nunca chega a escrever o seu lendário romance Memórias de um átomo? Ou, quem a ir a uma peça de teatro ou ao cinema não se deparou com comportamentos semelhantes aos da sequência do Sarau da Trindade? Não são, por isso, "Os Maias" um exemplo queirosiano da tese da «não inscrição» de José Gil: apesar de profundos acontecimentos trágicos (no romance a história de amor proibido entre Maria Eduarda e Carlos, na História de Portugal imensos exemplos no século XX), nada se altera no «ser português». Por isso são “Os Maias” um romance tão actual, e por isso o filme é tão novo. Uma obra sobre o Portugal de hoje – e de sempre – e não um filme de época. A teatralidade e a narratividade do filme ressalvam isso mesmo. Não há uma força positiva que puxe os personagens, que só correm para a mesa de jantar. No fim, Carlos e Ega correm para o «americano» (“Ainda o apanhamos!”) para não se atrasarem para o convívio com os amigos e para o jantar. Como disse João Botelho em entrevista ao Público, «enquanto houver comida Portugal continuará a existir».

Mas as forças diletantes descritas no parágrafo anterior não domaram completamente o querer fazer obra por parte de alguns portugueses. Há quem não se conforme com o estado reinante de «laissez faire laissez passer» (deliciosa expressão francesa) e crie. Apontamos no começo deste texto alguns realizadores portugueses. Eça, ao contrário do seu alter-ego João da Ega, escreveu “Os Maias”. João Botelho passou o romance a filme, trazendo ao cinema português – tantas vezes vilipendiado pelos Dâmasos e pelas Marias da Cunha – mais uma jóia para a sua coroa. E até o autor destas pouco recomendáveis linhas escreveu um texto para o Portal do Cinema. “Os Maias”, de Eça de Queiroz e agora também de João Botelho: continuamos lá todos.

Texto da Autoria de João Sousadias

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