Espaço Bizarro - Begotten (1989)


Realizado por Edmund Elias Merhige
Com Brian Salzberg, Donna Dempsey e Stephen Charles Barry

Um deus esventrado, em agonia, relaciona-se intimamente com a mãe-natureza. Herdeira de um legado divino - a geração de uma vida -, a (mãe) natureza dá à luz um homem adulto, com o qual percorre uma realidade caótica e infértil, dominada pela violência e pelo irracional. A dureza dos cenários e a aparente naturalidade com que os inúmeros intervenientes - principais ou secundarizados - encaram a dor e a tortura, quer como vítimas, quer como assassinos, constitui o referencial da atmosfera criada por Merhige.
Em "Begotten" não é clara a dimensão do tempo, nem chega a esclarecer-se qual é a magnitude, ou escala, dos eventos ali representados. Sejam eles relativos a um homem, a uma civilzação, a um deus ou a qualquer outra entidade. Manifestamente gore, a narrativa é desprovida de diálogos, cabendo à  banda sonora minimal, de inspiração naturalista (uma respiração inquietante e o ruído de grilos acompanham a totalidade do filme) e à sucessão de enigmáticas imagens monotónicas, a transmissão do terror e do mal.

Descreve-se, para além do sofrimento, da morte e do sexo, um "princípio" e um "fim": não obstante a carga grotesca e quase pasoliniana de "Begotten", génisis e términus (da vida) são objectivamente abordados, despoletando uma reflexão que se eleva para além do complexo pictórico elaborado por Merhige. Cruzam-se, por mérito do autor, episódios do politeísmo egípcio, do cristianismo e de credos pagãos, tais como o culto da morte, o nascimento ou a ressurreição, ou ainda o regresso à natureza.
É conhecido o fascínio de Edmund Elias Merhige pelo oculto e pelo obscurantismo. Os clips que realizou para Marylin Manson (em "Cryptorchild" são usadas diversas sequências de "Begotten"), as duas curtas metragens "Spring Reign" (1984) e "A Taste of Youth" (1985), o amplamente divulgado "The Shadow of the Vampire", de 2001, e o sub-valorizado "suspect Zero" (2004) são disso reveladores, abordando-se o profano e o paranormal, e questionando-se o instituído. Independentemente do orçamento disponível, da motivação ou dos meios usados (a expectativa em torno de "Games they Play", a ser divulgado já em 2013, é grande). Em "Begotten", hoje considerado filme de culto, Edmund Merhige retrata as raízes dessa inspiração negra, conectando-a temática e plasticamente com a totalidade da sua obra e, numa perspectiva estritamente pessoal, revisitando o brutal acidente de viação de que foi vítima, aos 19 anos de idade.

A expressão crua de "Begotten" - com a qual a mais recente curta "Din of Celestial Birds" (2006) é consonante - advém da coragem evidenciada pela técnica e linguagem utilizadas, e da ambição de assumir a realização, guião, montagem, produção e edição em simultâneo, num exercício sem paralelo no domínio do cinema contemporâneo: Merhige despendeu cerca de quatro anos de trabalho intensivo em pós-produção, refinando, re-fotografando e filtrando, fotograma a fotograma, a totalidade do filme, em busca de um registo próximo do da intemporalidade.
"Begotten" é uma obra única, dirigida a apreciadores de cinema fantástico e a audiências que perseguem plasticidades experimentalistas e enredos de acepção meta-física. Um espectador desinformado corre o risco de se sentir maltratado por uma obra ininteligível, de ritmo atípico e impregnada por um esgar de dor permanente. "Begotten" foi bem recebido pela crítica e no meio artístico ocidental, tendo, enquanto debutante, colhido reconhecimento no San Francisco International Film Festival, em 1990.

Enviar um comentário

0 Comentários

//]]>