Critica - The Good, the Bad and The Ugly (1966)

Realizado por Sergio Leone
Com Clint Eastwood, Eli Wallach, Lee Van Cleef

A haver um grupo de realizadores que marcaram as décadas de 60 e 70 no cinema, o italiano Sergio Leone teria naturalmente de estar presente. No entanto, o seu estabelecimento num cânone de "grandes realizadores" não é consensual, principalmente junto da crítica anglo-saxónica, dada a sua postura descontraída na indústria. Construindo grande parte da sua carreira cinematográfica no famoso estúdio Cinecittà de Roma, com filmes mais comerciais do que artísticos, Leone não impressionava a crítica americana. O sucesso junto do público, no entanto, permitiu-lhe chegar a Hollywood, dando-lhe o estatuto ideal para que grandes projectos fossem possíveis. Quando em 1966 Leone apresenta este seu The Good, The Bad and The Ugly, as expectativas seriam naturalmente altas. Era o terceiro filme da chamada "trilogia dos dólares": A Fistfull of Dollars (1964), For a Few Dollars More (1965) e The Good, The Bad and The Ugly (1966). Todos filmes violentos, protagonizados pelo inigualável Clint Eastwood e que alcançaram um enorme sucesso junto do público, inaugurando mesmo aquilo que viria a ser designado como "The Western Spaghetti" – Westerns feitos na Europa. Jogando aqui e ali com a tradição do Western clássico de John Huston, por exemplo, The Good, The Bad and The Ugly, vem, juntamente com os dois filmes que o precederam, ressuscitar o género, mas através de uma engenhosa transfiguração dos seus cânones estéticos e, sobretudo, narrativos.
Filme muito ritualistico, baseado numa história escrita pelo próprio Sergio Leone e Luciano Vincenzoni, tem como fio condutor a procura de uma fortuna em ouro por parte de três homens, consideravelmente diferentes, mas que, aos nossos olhos, nos são apresentados quase como figuras complementares. O filme começa mesmo por nos apresentar – literalmente – essas personagens. De um lado temos o inevitável Clint Eastwood e o seu cowboy sem nome, "Blondie" – reeditando assim o papel de "Good" da nossa história –, depois temos o seu quase Sancho quixotesco, Eli Wallach como Tuco, "the Ugly", e, por fim, o "Bad", ironicamente alcunhado de "Angel Eyes", interpretado por Lee Van Cleef, actor que viria a ser tão popular em Itália que estaria presente em mais dez Western europeus. Estas serão as personagens centrais do filme, protagonizando algumas das cenas mais famosas da história do cinema e que intensificam a ironia permanente da realização e argumento de Leone. Para reforçar esse sentido de ironia quase caustica, o cenário deste confronto a três deixa de ser as paisagens idílicas de uma América pura e cheia de vida – aquela do Western clássico –, para passar a ser a guerra civil, num mundo que claramente está em mudança. A guerra civil americana (1861-1865), que divide o Sul e o Norte, surge como elemento secundário na vida daquelas personagens, já que a elas aquilo que realmente interessa é o enriquecimento. Leone, e os seus co-argumentistas, cria, assim, a maior ironia do filme – uma guerra sem sentido, em que o valor dos combatentes se mede pelo nível elevado de álcool no sangue. A carga satírica da película é ainda maior se consideramos que a América dos anos 1960 estava a braços com um dos momentos mais violentos da guerra que se viria a tornar uma das mais problemáticas da sua história, a guerra do Vietname (1959-1975), bem como com diversos tumultos sociais motivados sobretudo por questões raciais. Numa América violenta, os filmes de Leone são assim vistos como espelhos metafóricos da realidade. As personagens deste filme agora clássico, funcionando quase como caricaturas num mundo onde já começam a não fazer sentido, deambulam por entre espaços de civilização destruídos, procurando realizar objectivos individuais numa sociedade que se confronta com vista a um ideal de nação colectivo. O ouro procurado pelas três figuras, diria, do passado, torna-se mesmo aos nossos olhos ridículo. Aquela demanda, perante o palco de guerra por onde passam, vem, de certa forma, confrontar a América com o individualismo que está na sua génese. Aos olhos de um realizador estrangeiro, preocupado em fazer reflectir nos seus filmes a verdadeira América – se é que há uma verdade para ser exposta –, o individualismo americano começa a não fazer sentido quando outras questões divisórias estão em debate.
Juntando a esse subtexto irónico que pauta o ritmo do filme, temos também um retrato duro daquela realidade. "Tuco" e "Blondie", à medida que vão caminhando rumo ao alcance do seu objectivo final, vão como que passeando pelo cenário de guerra. Assumindo claramente o papel de espectadores – nenhum deles adopta uma posição relativamente aos combatentes –, ambas as personagens percorrem todo aquele palco descontraidamente, ao ponto de, em determinado momento do filme, terem estado no interior de ambas as facções em disputa, sem que haja qualquer retaliação. Misturando claramente uma comédia de situação com um retrato mais duro, Leone consegue transmitir, e provocar, de forma engenhosa o sentimento mais profundo que se vai construindo ao longo da narrativa. As personagens de Clint Eastwood e Eli Wallach, ao contrário do claro "Bad", "Angel Eyes", vão progressivamente sendo tocadas pela realidade que os rodeia. Com isso, nós espectadores, vamos também conseguindo aproximarmo-nos de ambos, sem no entanto deixarmos de acreditar que aquilo que os move será sempre o ouro que os espera, a sobrevivência num mundo caótico portanto. A toada do filme é gerida com rigor por parte da realização, alternando entre momentos de quase contemplação e momentos dramaticamente mais fortes e intimistas, principalmente no que se refere à relação dúplice entre os dois companheiros de golpadas, "Tuco" e "Blondie". De tal forma que, podemos ver ai reflectida a relação de amizade retorcida, entre George e Lennie, criada por John Steinbeck no seu livro de 1937, Of Mice and Men, em que vemos dois elementos que, sendo totalmente opostos, acabam por precisar da companhia que o outro representa para sobreviverem a um contexto adverso. Ao evocar o texto de Steinbeck, o filme de Leone assume-se assim como comentário à América que sempre admirou. A carga emocional do filme, essa, é construída sobretudo pelo jogo de câmara que mais notabilizou Sergio Leone. Leone faz em The Good […] aquilo que repetiu amiúde vezes em diversos filmes ("Trilogia dos dólares" claro está, mas também Once Upon a Time in the West; Once Upon a Time in America): alternância entre poderosos "close-up" – que lhe valeu o ser conhecido como o realizador que fazia "odes ao rosto humano" (Adrian Martin) – e grandiosas panorâmicas, combinação que dá indiscutivelmente uma maior intensidade às interpretações e ao filme em geral. Tudo isto, pautado pela magnífica – e já icónica – banda sonora de Ennio Morricone, acaba por trazer ao cinema em língua inglesa uma dimensão estética, estilística e narrativa únicas, muito influenciada pela escola Neo-Realista italiana que influenciou Sergio Leone.
Na verdade, este The Good […] é construído como uma estória quase mitológica, efeito reforçado por toda a sequência inicial. De um ritualismo quase mecânico, os primeiros momentos do filme como que apresentam todos os elementos ditos clássicos do Western, que serão transfigurados à medida que a narrativa vai avançando. Além de "Bom", "Mau", temos a subversão que representa o "Feio" ou, como ficou conhecido na tradução em Portugal, o "Vilão". A juntar a isso, as primeiras imagens apresentadas pela câmara de Leone são quase que obsessivamente as dos olhos. O palco de confronto é muitas vezes mental, de observação pura, algo que se repete ao longo da acção. Repete-se também outro dos elementos fortes do filme: o silêncio. De facto, Leone gere eficazmente os momentos de silêncio, intercalados pela belíssima composição de Morricone, o que por si confere a toda a narrativa alguma força dramática. Outro aspecto que funciona claramente como instrumento transfigurador do Western clássico, visível logo na sequência inicial, é mesmo a desconstrução da noção de "Bem" e "Mal". As velhas noções divisórias do Western puro de Hollywood são esbatidas perante a apresentação destas três personagens ambíguas, que vêem o crime como salvação. É certo que continua a haver uma hierarquia dentro daquilo que é aceitável e não, mas mesmo essa ordem natural é dúbia. "Angel Eyes", por exemplo, é-nos apresentado seguramente como sendo o "Bad" da trama, mas a verdade é que acaba por ser uma personagem atractiva e que demonstra ter poder. Pelo contrário a personagem de Clint Eastwood, ironicamente, é o "Good", não deixando porém de recorrer a todo o tipo de truques para levar a melhor sobre todos os outros. "Tuco", por sua vez, revela-se de igual forma atractivo. Sendo-nos apresentado como o "Ugly" da narrativa, acaba por em momentos cruciais revelar ter bom coração, apesar de tudo. Com as três personagens somos, assim, lançados para o palco da vida real, onde nem tudo é declaradamente mau ou bom, algo que contribui em muito para o sucesso dos filmes de Leone. Esta subversão mais ou menos evidente tem, no entanto, o seu impacto maior em todos os episódios relacionados com a guerra civil que serve de cenário ao percurso das personagens. Naquela guerra, bons e maus estão misturados, as velhas noções do Oeste Americano são completamente destruídas, tal como destruída é a ponte que segura um dos principais focos de combate entre soldados de Norte e Sul, assim simbolizando uma certa viragem na narrativa.
Momento decisivo do filme será mesmo aquele em que "Tuco" e "Blondie" se vêem forçados a caminhar juntos para alcançarem o ouro que os espera. Ambos terão de permanecer em território controlado pelas tropas do Norte (Eles são do Sul), em pleno combate. Assim, o plano paralelo à guerra que seguem vai aos poucos ser remetido para segundo lugar quando confrontados pela realidade da crueldade, mesmo aos olhos de um cowboy, da guerra. A dimensão humana parece começar a ser mais importante do que o ouro. A carga emocional aumenta. Contudo, mais uma ilusão é criada. Não é afinal a dimensão humana que aumenta, é sim mais um exemplo da ironia e sátira que Leone empresta ao filme. O dinheiro estava temporariamente remetido para segundo lugar, mas apenas porque a necessidade de sobrevivência seria maior naquele instante. Mal se conseguem "libertar" da guerra, as suas agendas individuais continuam, toda a dimensão humana é esquecida e as personagens retomam a sua marcha. No final, recentram-se – literalmente – os temas de qualquer Western que se preze. É mesmo recriado o duelo que todos associamos ao Western de Hollywood, compondo uma das imagens de marca da carreira de Sergio Leone em particular e do "Western Spaghetti" em geral. Fica, para a posteridade, a ironia final, a ironia da redenção última de "Tuco" e "Blondie". As palavras de Clint Eastwood, essas, ficam também para sempre, compondo uma filosofia de vida sempre actual: "Neste mundo há dois tipos de pessoas meu amigo. Aquelas com armas carregadas e aquelas que cavam." Depois de tudo, a cavalgada final ao pôr-do-sol. John Huston no seu melhor.


Classificação - 5 Estrelas Em 5

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5 Comentários

  1. Como sempre um texto bastante completo e muuito interessante. Confesso que nunca vi o filme mas fiquei curioso.

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  2. nao vi o filme e confesso que nunca prestei muita atenção a Sergio Leone... Mea Culpa je sais! Mas irei tentar preencher essa lacuna o mais brevemente possivel!

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  3. pequena correcção: quando procuro referir um Western clássico falo em John Huston... provavelmente um John Ford funciona melhor. Agradeço os comentários

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  4. Westerns passam-me bastante ao lado, então os mais antigos são para mim uma grande incógnita. Mas mesmo assim um excelente texto Ricardo.

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  5. É um clássico, respeito, mas gosto mesmo é do tema musical.

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