Crítica - Snowpiercer (2013)

Realizado por Joon-ho Bong 
 Com Chris Evans, Jamie Bell, John Hurt 

Ao redor do polivalente e esperado “Snowpiercer” pairou sempre um ambiente de elevada expectativa mas também de grande desconfiança, porque foram poucos aqueles que se atreveram a tecer grandes profecias sobre o potencial e/ou a qualidade de um filme produzido por Park Chan-wook e realizado por Bong Joon-ho, duas lendas do cinema sul-coreano, que juntaram então os seus génios individuais para darem vida a um arriscado filme pós-apocalíptico futurista, cuja intriga claustrofóbica desenrola-se no espaço limitado de um comboio que representa, de certa forma, uma espécie de Arca de Noé dos tempos modernos. É possível agora afirmar que a aposta de Chan-wook e Joon-ho não poderia ter corrido melhor, pelo menos no âmbito dos parâmetros de qualidade, porque “Snowpiercer” é de facto um produto diferente e cativante que, sem apostar em sequências de ação explosivas ou cenários apocalípticos muito gráficos, consegue traçar um perfil narrativo empolgante e plenamente satisfatório que puxa da melhor forma possível pelas tragédias humanas e consequências morais que estão presas ao cenário pós-apocalíptico que rodeia o quotidiano das personagens. 
A intriga de “Snowpiercer” desenrola-se portanto em 2031, dezassete anos após um grupo de cientistas terem avançado com uma experiência revolucionária que pretendia combater o aquecimento global, mas que acabou por ter consequências trágicas e a dar origem a uma nova Idade do Gelo. Os poucos sobreviventes humanos estão agora presos num comboio gigantesco dotado de um motor de movimento perpétuo que nunca para, seja quais forem as circunstâncias, permitindo assim ao comboio percorrer um circuito ferroviário que atravessa todos os continentes agora gelados e sem qualquer vida. O quotidiano dentro do comboio é pautado por um clima tenso, já que a vida dos seus habitantes é organizada por uma hierarquia social desigual, onde os mais privilegiados vivem no luxo, ao passo que os mais pobres vivem no fundo do comboio sem grandes possibilidades ou esperança. Esta hierarquia social desigual é mantida a pulso por um misterioso ditador que faz questão de manter esta ordem rigorosa de ideias sociais que, longe do luxo das classes privilegiadas, começam a ser contestadas por um grupo de rebeldes da classe pobre que estão decididos a desencadear uma grande insurreição que promete alterar a balança de poder dentro do comboio. 


A grande beleza deste projeto prende-se, como é óbvio, com a surpreendente força do seu guião altamente polivalente, que tem como base a graphic novel francesa “ "Le Transperceneige". E digo que é polivalente porque “Snowpiercer” consegue apelar a todos os géneros com uma objetividade impressionante, já que tanto consegue apelar ao lado mais dramático, trágico e moralista do público, como consegue também puxar, sem grandes dificuldades, pelo seu lado mais direcionado para a ação e adrenalina graças a uma trama energética e sempre virada para o confronto. Este objetivo é liderado pela saliente luta de classes que pauta a base moral do filme, já que “Snowpiercer” aposta desde cedo na invocação de uma espécie de revolução social de poder que opõem as classes desprivilegiadas do comboio contra as classes privilegiadas. É neste sentido que surgem todos os grandes confrontos físicos e morais, que incluem por exemplo a sangrenta batalha entre os corajosos rebeldes e as forças especiais da classe alta num escuro e claustrofóbico vagão do comboio, mas também os diálogos moralmente pertinentes que são travados entre destemido Curtis e o vilanesco Wilfred já na parte final do filme. Estes são apenas dois dos principais momentos de um produto inesperado que tem muitas sequências memoráveis e que, como um todo, funciona na perfeição na sua demanda para ilustrar as mensagens de desespero e tragédia causadas pela desigualdade e pela falta de oportunidades, mensagens essas que estão quase sempre na base das revoluções sociais. 
É também quase impossível não considerar “Snowpiercer” um filme objetivamente chocante, porque ao longo da sua história somos presenteados com muitas imagens perturbantes mas repletas de significado. Entre estes exemplos encontram-se, por exemplo, a descoberta macabra da origem dos produtos alimentares que são entregues à classe baixa; a sequência que mostra dois pais a perderem os seus filhos para a classe alta; os castigos e as execuções públicas que as classes altas levam a cabo para dissuadirem e amedrontarem os rebeldes; ou a sequência completa que tem lugar no vagão escola e que, curiosamente, termina num grande massacre. Estes são exemplos da parte mais explícita deste projeto que, para além das já mencionadas mensagens de revolução, pega também em outros traços trágicos para apimentar a intriga, como a dependência de drogas ou a portentosa frieza das pessoas que estão no poder. No final, “Snowpiercer” aposta em vários twists interessantes que conferem aos seus últimos vinte minutos um nível de surpresa e expectativa bem elevado que torna ainda mais empolgante a experiência extremamente positiva que é assistir a este projeto bem pensado e interpretado, já que a dar vida a um guião complexo está um elenco repleto de talento que inclui, por exemplo, a carismática Tilda Swinton, o consagrado John Hurt, o enigmático Song Kang-ho e o popular Chris Evans que, sem dúvida, mostra mais uma vez que tem tudo para ser considerado um ator que deve ser levado a sério. Este conjunto de qualidades e imaginação tornam “Snowpiercer” num filme pleno de virtudes que o tornam num visionamento apetecível para qualquer apreciador de um tipo de cinema mais polivalente, ou seja, um cinema que nem sempre é artístico e nem sempre é comercial.

Classificação - 4 Estrelas em 5

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