Crítica - Selma (2014)

Realizado por Ava DuVernay
Com David Oyelowo, Tom Wilkinson, Tim Roth

Recentemente, os Estados Unidos da América voltaram a ser assolados por uma série de tragédias relacionadas com violência entre caucasianos e afro-americanos que culminaram numa série de protestos em vários pontos do país, uns mais pacíficos que outros, mas que serviram em conjunto para demonstrar na perfeição que em pleno Século XXI e com Barack Obama no poder ainda existe muita tensão racial no país, como aliás sempre existiu e existirá nas próximas décadas. A ressurreição mediática desta importante problemática deu uma inesperada relevância a "Selma", um drama histórico cuja única missão é retratar com o máximo de pormenor possível a luta histórica levada a cabo pelo famoso ativista Martin Luther King para garantir o direito ao voto para todas as pessoas de todas as raças e credos, luta essa que culminou numa marcha épica desde a cidade de Selma até Montgomery, no Alabama, e que levou o Presidente Lyndon B. Johnson a assinar a Lei dos Direitos de Voto em 1965, lei essa que ainda hoje se encontra em vigor e representa uma das pedras nucleares da Luta Pela Igualdade nos Estados Unidos. 
A missão política, moral, patriótica, histórica e igualitária de "Selma" é perfeitamente alcançada sem grandes sobressaltos e por intermédio de um argumento equilibrado que nunca corre grandes riscos e raramente desvia a sua atenção da história particular que retrata. Embora não possa ser classificado como uma cinebiografia pura e completa de Martin Luther King, "Selma" espelha alguns vislumbres dos seus feitos e da sua vida intima e, com isso, oferece ao espectador um olhar curioso e dramático sobre quem foi e como se comportava esta importante personalidade norte-americana que viveu e morreu pelos Direitos dos Afro-Americanos nos Estados Unidos. O próprio evento nuclear que está na génese desta obra é retratado com um poderoso toque humano e dramático que, para além de cumprir as exigências históricas que o rodeiam, consegue expor as bases e emoções humanas, boas e más, que estiveram na origem, objetiva e subjetiva, de todos os felizes e infelizes eventos humanos que marcaram o Movimento dos Direitos Civis e a luta entre Brancos e Negros nos Estados Unidos durante grande parte do Século XX. Sob um ponto de vista meramente histórico e até moralista sobre a questão dos Direitos do Homem, "Selma" mostra-se competente na forma como expõem as questões centrais e faz questão de as tratar com a máxima dignidade possível sem denegrir qualquer lado e, acima de tudo, sem recorrer a truques baixos para moralizar e dinamizar o público ou melodramatizar em demasia o argumento. É óbvio que não estamos perante um documentário e, por isso, estranho seria que mais pormenores históricos existissem para completar a trama ou que certos pontos não fossem embelezados, como seria também estranho se "Selma" se focasse apenas e só na questão da Marcha de Selma até Montgomery e ignorasse outros elementos secundários e, neste ponto, é importante focar que, apesar de breves apontamentos narrativos como os pontos altos e baixos do casamento do protagonista ou o retrato das vidas privadas e opiniões de certas personagens secundárias não serem particularmente interessantes ou envolventes, todos estes apontamentos mais secundários têm o simples mas importante objetivo de darem um certo contexto humano a toda a questão central que é abordada. O único ponto secundário que, para mim, é pessimamente aproveitado diz respeito às inquietantes manobras políticas dos grandes poderes americanos que seriam importantíssimas de explorar com mais profundidade, mas que em "Selma" são, infelizmente, atiradas para um canto muito secundário que não lhes permite ganhar o destaque e a garra que, porventura, mereciam. 


No geral, "Selma" cumpre com as expectativas históricas e morais em relação ao poderoso evento que retrata, evento esse que se insere no âmbito de uma questão muito maior que também é abordada com o devido respeito e sem grande alvoroço dramático. É claro que, pelo meio do filme e no conjunto de tudo o que é retratado, somos confrontados com múltiplos ideais tipicamente americanos e raciais que mais dirão ao público norte-americanos que ao público europeu, mas mesmo estes pontos não são assim tão proeminentes e estão longe de terem a força suficiente para alienar qualquer espectador, até porque a sua presença é compreensível e justificada atendendo à questão central deste projeto. A outra coisa menos positiva de "Selma" prende-se com a forma como o seu argumento desenvolve-se sob a batuta de um ritmo demasiado lento e enfadonho que acaba por não fazer justiça à força e violência da história que retrata, mas tal questão acaba por pertencer à responsabilidade da realizadora Ava DuVernay. À margem deste pequeno mas importante percalço, DuVernay acaba por ter um trabalho técnico e criativo muito apelativo, sendo de destacar em particular a criação de duas sequências particularmente poderosas: a que retrata a Marcha do Domingo Sangrento e a que mostra a execução de um atentado contra uma Igreja que acabou por vitimar quatro crianças e que, em jeito de explosões e elemento surpresa, acaba por superar, por exemplo, qualquer sequência bélica que marca presença em "American Sniper", que também concorre com "Selma" ao Óscar de Melhor Filme. E por falar em Óscares há que dizer que a ausência da nomeação de David Oyelowo ao Óscar de Melhor Ator não se compreende nem se pode aceitar de ânimo leve. É claro que Oyelowo nunca teria força para vencer o prémio, mas a sua forte performance na pele de Martin Luther King seria merecedora, pelo menos, de uma honrosa nomeação que acabou por não se concretizar. Oyelowo é, de resto, o único ator que realmente se destaca de forma positiva em "Selma", porque o restante elenco fica muito abaixo do nível geral do filme, nomeadamente o experiente Tom Wilkinson, que não acrescenta qualquer valor a este projeto com a sua interpretação do Presidente Lyndon B. Johnson. 
Nomeado a apenas dois Óscares da Academia (Melhor Filme e Melhor Canção Original), "Selma" não justificaria muitas mais nomeações à exceção, claro está, da nomeação de Oyelowo ao Óscar de Melhor Ator, mas compreende-se porque é que esta obra dramática quase passou ao lado da época de prémios porque, apesar de ser um filme competente que retrata com qualidade um evento histórico complicado, a dura realidade é que nunca será um daqueles filmes memoráveis que marcará gerações de cinéfilos ou que será recordado por muitos e bons anos. É competente e quase perfeito para aquilo a que se propõem mas pouco mais que isso. É um filme que dirá muito ao público norte-americano e que tem um importante contexto dramático e histórico para o restante público, mas como peça cinematográfica é, apenas e só, um drama histórico, competente e informativo que faz pensar quem o vêm mas que, no fundo, acaba por não puxar pelo ativismo humano e social do espectador.

Classificação - 3,5 Estrelas em 5

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2 Comentários

  1. Mais um filme a retratar mais uma história negra da História, não só a Norte Americana, mas a Universal, a do Homem imperfeito na sua essência, cujos mesmos erros continua e continuará a repetir infinitamente, infelizmente.
    Gostei do filme, não posso dizer que não, mas, talvez por ter já visto tantos sobre o mesmo tema, não me tocou, como me tocou “12 Anos de Escravidão” ou tantos, tantos outros que já vi ao longo da minha vida. Adoro cinema desde que me conheço. Ainda me lembro do primeiro e segundo filme que me tocaram: “Oliver Twist” de 1968 (era eu uma miudinha) e “Ryan’s Daughter” de 1970, respectivamente. Jamais esqueci os actores ou histórias. Entre o primeiro e o segundo que me tocaram estão “n” deles, desde musicais, westerns, espadachins, dramas, comédias, acção, terror, suspense, desde clássicos aos contemporâneos. Fã incondicional de filmes franceses e britânicos e, ainda, de Woody Allen, direi que sou apenas uma admiradora da Sétima Arte, que vê os filmes com o olho da sensibilidade e não tanto com o olho crítico.
    Achei interessante a forma “calma” (não achei lenta e, sim, serena, aquela serenidade de quem sente ter razão), sem grandes alaridos, com a qual DuVernay dirigiu a história sobre o “Domingo Sangrento em Selma”, dando-nos, ainda, a possibilidade de vislumbramos, por entre um registo velado aqui e outro acolá, um pouco da vida privada de Martin Luther King e da sua família e, ainda, dos bastidores da sua luta pelos direitos humanos (não gosto de referir “direitos civis dos negros”, porque todos eles são Humanos). Martin Luther King foi, incontestavelmente, um Homem Inspirador, até na forma como discursava.
    Curiosidade: Vi hoje o filme, no mesmo dia que Obama fez a mesma Marcha, em Selma. :)
    Gostei também da sua crítica sobre o filme. :)

    “Keep up the good work!”

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  2. "Selma: A Marcha da Liberdade" é um filme demasiado longo, fazendo que se torne algo enfadonho e aborrecido. O filme é bom, é interessante e tem um bom elenco.
    Mas "Selma" torna-se algo cansativo de ver devido a ser enorme, contudo recomendo que o vejam.
    3*
    Pode ler e/ou comentar a análise completa em: http://osfilmesdefredericodaniel.blogspot.pt/2015/03/selma-marcha-da-liberdade.html
    Cumprimentos, Frederico Daniel.

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