Histórias do Cinema - The Accused, O Aclamado Thriller Com Jodie Foster Inspirado Num Caso Criminal Que Afetou a Comunidade Portuguesa


Recentemente, a Netflix estreou uma nova série documental intitulada "Trial by Media", onde são abordados vários casos criminais mediáticos que marcaram a sociedade norte-americana. Um dos casos abordados é o da Violação em Grupo que ocorreu num bar em 1983 na cidade New Bedford no Massachusetts, uma comunidade predominantemente piscatória que, na altura, era maioritariamente composta por emigrantes ou descendentes de emigrantes portuguesas (segundo o Censos da Época, a Comunidade Portuguesa ou Descendente de Portugueses representava 60% da população local).
Este caso marcou a sociedade norte-americana devido à lascividade e à brutalidade do crime em questão e, como "Trial by Media" nos diz, lançou um grande debate público que dividiu a sociedade e fraturou a comunidade portuguesa que, por um lado, foi vítima de ostracizarão por parte da sociedade norte-americana e, por outro, dividiu-se ente o apoio e o ataque à vítima do crime. 

O Caso Criminal


O caso em questão é simples de explicar segundo os relatos da imprensa e do próprio julgamento. Em 1983, uma jovem entrou num bar em New Bedford e foi atacada por vários homens, tendo sido alvo de agressões sexuais e verbais. Devido à peculiaridade do caso, este conquistou uma enorme atenção mediática em todos os Estados Unidos da América. Os casos de violação não eram, na altura e até ainda hoje, acontecimentos raros nos Estados Unidos, alias os casos de agressão sexual foram sempre predominantes nos tribunais americanos, mas este chocou particularmente a opinião pública e lançou um grande debate entre a sociedade. E impulsionou acima de tudo o movimento feminino no país que olhou para este caso como um exemplo perfeito da cultura machista que predominava na sociedade, já que muitos começaram a culpar a vítima pelo crime. 
A comunidade de New Bedford foi rapidamente inundada por jornalistas vindos de todo o país e, de um momento para o outro, a pacata comunidade predominantemente portuguesa viu-se no epicentro de uma grande controvérsia com o tema da igualdade de géneros no epicentro da confusão. Os aspetos concretos do caso passaram, de certa forma, para segundo plano e o debate tomou conta do circo mediático no país. A este debate juntou-se outra controvérsia. A comunidade portuguesa começava a ser atacada pela sociedade norte-americana que, perante a dimensão do caso, começava a olhar para os portugueses ou seus descendentes como pessoas com uma bússola moral diferente dos valores norte-americanos e, assim, uma comunidade que era vista como pacifica, trabalhadora e essencial transformou-se, de um dia para o outro, numa comunidade isolada do resto do país. E tal sucedeu, sobretudo, porque alguns dos suspeitos tinham ligações à comunidade emigrante portuguesa. No Massachusetts, particularmente, ecoavam relatos na imprensa a pedir a expulsão dos emigrantes portugueses.
Foi um período conturbado para os portugueses e seus descendentes na Costa Este dos Estados Unidos e, como seria de esperar, o caso teve repercussões mediáticas também em Portugal, especialmente nos Açores. Mas o Governo Português sempre respeitou a autoridade judicial Norte-Americana e não interveio, em nenhum momento, nos atos judiciais referentes ao caso.
O caso foi a julgamento e culminou com a condenação dos quatro suspeitos de terem perpetrado o ataque sexual contra a vítima (outros dois homens foram acusados mas considerados inocentes). Por uma questão de respeito e por não ser esta a base do presente texto, o nome da vítima e dos acusados não será divulgado, apesar de fazerem parte do registo público e do registo judicial. Este caso teve uma particularidade, já que foi o primeiro julgamento de violação a ser transmitido em direto na televisão devido à enorme onda mediática que o caso gerou. O julgamento captou a atenção de milhões de americanos e desenrolou-se quase como uma novela, tendo gerado às cadeias noticiosas recordes de audiências. Não se pode dizer, no entanto, que esta opção tenha sido consensual, já que, posteriormente, foi muito criticada e alvo de debate académico, até porque o julgamento expôs em direto a identidade a a morada da vítima que deveria ter sido mantido em secretismo. Para mais informações sobre o caso recomendo então o quinto episódio da primeira temporada de "Trial by Media" que explora na perfeição este caso!


A Chegada do Caso a Hollywood....E o Renascer de Jodie Foster


Durante "Trial by Media" uma das pessoas entrevistadas na época, quando confrontada com a peculiaridade do caso, diz que o mesmo vai de certeza ser adaptado ao cinema. E claro que estava certo. Em 1988, apenas quatro anos após o julgamento, era lançado nos cinemas "The Accused", um drama com Jodie Foster e Kelly McGillis nos principais papéis. O filme nunca foi promido, por questões legais, como uma adaptação direta do caso ocorrido em New Bedford, mas sim como um filme inspirado no mesmo. Os locais e os nomes dos envolvidos foram alterados e, claro está, os eventos foram drasticamente modificados, mantendo-se apenas a base do caso. Não existe qualquer menção a uma comunidade em específico nem a nenhum debate populacional, já que o foco central do filme manteve-se na questão da igualdade de géneros e na cultura de misoginia e de victim blaming presente na sociedade norte-americana.
O filme foi aclamado pela imprensa e até chegou aos Óscares, onde Jodie Foster conquistou o seu primeiro Óscar de Melhor Atriz Principal (viria a conquistar o segundo com "The Silence of the Lambs"). Em Portugal, "The Accused" estreou nos cinemas nacionais em Fevereiro de 1989, uma semana antes da cerimónia dos Óscares. Mas pese embora o seu sucesso, "The Accused" esteve quase para não ser feito.


Inspirado pelo caso de New Bedford, o guionista Tom Topor criou uma primeira versão do argumento focada quase em exclusivo na vertente judicial da história e sob a perspectiva da procuradora interpretada por Kelly McGillis. Mas acabou por mudar a direção da narrativa e por dar mais ênfase à história da vítima e ao lado mais humano e social do caso. A Paramount, o estúdio por detrás do filme, aprovou a ideia e deu luz verde ao projeto. Mas teve dificuldades em convencer uma atriz de renome a assumir o papel da vítima. Jennifer Grey, Meg Ryan, Joan Cusack, Jennifer Beals, Ally Sheedy e Kelly Preston todas recusaram o papel devido à polémica cena de violação e à polémica em redor de toda a história. 
Após um início de carreira fulgurante, Jodie Foster promoveu uma pausa voluntária na sua carreira para se dedicar aos estudos e para se afastar da polémica em que se viu envolvida em 1981, quando John Hinckley admitiu que tentou matar o Presidente dos EUA Ronald Reagan para a impressionar. Embora tenha participado em alguns filmes interessantes entre 1981 e 1988, certo é que a pausa para estudar e a polémica com Hinckley afetaram gravemente a sua carreira e, em 1988, Foster estava à beira do esquecimento mediático. Os tempos da aclamação de "Taxi Driver" pareciam, nesta altura, que nunca se iriam repetir e o futuro da ainda jovem Foster em Hollywood parecia negro! Foster não estava no radar dos grandes estúdios de Hollywood e nem tinha sido considerada, sequer, pela Paramount para "The Accused". Mas perante a dificuldade em encontrar uma atriz de renome para o papel, a Paramount acabou por contactar Foster que, apesar de tudo, tinha créditos firmados na indústria.
Embora com reticências, Foster aceitou o papel devido à sua situação precária e ainda bem que o fez, porque este viria a torna-se no seu primeiro sucesso após o seu regresso à vida ativa de atriz! Se não tivesse participado neste thriller, é bem provável que Foster nunca teria sido convidada a protagonizar "The Silence of the Lambs" e, se calhar, o filme não teria tido o impacto que teve e que ainda hoje tem. Será que, na altura, outra atriz conseguiria interpretar a icónica Clarice da mesma forma? Todos nós vimos o que aconteceu em "Hannibal" (2001),embora Clarice tenha sido interpretada pela sublime Julianne Moore. 
Uma pequena curiosidade em relação ao processo de seleção do elenco. Brad Pitt esteve quase a ser selecionado para interpretar um dos violadores, tendo até feito um casting brilhante, mas o papel acabou por ser entregue a outro ator. E se no caso de Foster, "The Accused" foi uma salvação para a sua carreira, no caso de Brad Pitt o facto de não ter sido escolhido também parece ter sido uma salvação, já que seria difícil a Pitt livrar-se da complexa imagem ligada ao papel e, se calhar, não teria conseguido alguns dos seus papéis mais icónicos nos anos que se seguiram. 


O Debate Chega ao Cinema


Tudo parecia correr de feição a "The Accused". As gravações correram sem problema e o filme parecia ter um grande elenco e uma grande equipa que, em conjunto, pareciam capazes de fazer justiça à inspiração real e aos temas em questão. A Paramount parecia depositar grande fé no projeto, pelo menos até ao dia do teste de audiência. Este teste consiste na exibição do produto final a uma audiência de teste antes do seu lançamento nos cinemas de forma a avaliar a reação do público ao mesmo, permitindo assim ao estúdio promover melhorias ao projeto ou a alteração da estratégia de lançamento nos cinemas.
O primeiro teste de "The Accused" foi um desastre. Com o caso de New Bedford e a sua cobertura televisiva ainda bem frescos na memória, a audiência de teste odiou o filme e considerou que a personagem de Jodie Foster mereceu ser violada, já que era uma personagem detestável que parecia estar a pedir ser violada. O filme recebeu, aliás, a pior classificação de sempre da Paramount Pictures numa audiência de teste.
Os resultados do teste abalaram a confiança em "The Accused" e, pior, pareciam confirmar uma tendência social norte-americana que o filme visava combater, já que uma das suas ideias era lutar contra a misoginia e o victim shaming. Já durante a cobertura do caso real, muitos dos americanos dividiram-se na opinião do caso e muitos tiveram precisamente a mesma reação que a audiência de teste. E isto era preocupante para o estúdio que não queria ser arrastada para um debate social que os pudesse prejudicar e abalar o desempenho comercial de outros filmes do estúdio. Foi então promovido um segundo teste que, curiosamente, teve o resultado oposto do primeiro e foi um dos testes de audiência mais positivos da história da Paramount. A diferença é que a audiência deste segundo teste era composta única e exclusivamente por mulheres. O estúdio concluiu, portanto, que o filme estava preso a uma questão cultural e que a sua aceitação nunca iria ser consensual, mas arriscou lançá-lo mesmo assim. E ao fazê-lo, a Paramount acabou por alimentar uma nova discussão sobre a misoginia nos Estados Unidos e por promover uma obra de qualidade sobre temas importantes de uma forma clara e direta. 
É claro que houve sectores da população norte-americana que atacaram a sua visão feminista, mas no geral "The Accused" acabou por ser muito bem recebido! E é, ainda hoje, um filme de culto! A sua cena de violação é uma das mais marcantes da 7ª Arte Norte-Americana e, ainda hoje, é alvo de inúmeras representações e de elogios pela sua força dramático e impacto social.

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