Crítica - Le Deuxième Souffle (2007)


Realizado por Alain Corneau
Com Daniel Auteuil, Monica Bellucci, Michel Blanc, Jacques Dutronc, Eric Cantona, Daniel Duval

Um ladrão da velha guarda, seguidor e praticante da mais estrita tradição valorativa e "moral" da classe, "Gus"(Daniel Auteuil) evade-se da prisão após dez anos de cárcere, e o submundo do crime que tinha abandonado está todo ele mais impuro e modificado na Paris dos 60's à qual regressa para encontrar a sua amante/femme fatale Manouche (Monica Bellucci). A conjuntura de mudança para padrões da prática criminosa (consideravelmente mais aviltantes, ambiciosos e ultrajantes) e das lutas entre as forças concorrentes nos esforços de dominar o máximo território pelos máximos lucros obtíveis com tal domínio, traçarão para Gus um trajecto tão coerente quanto auto-destrutivo. Todo o rumo seguido por Gus (rota narrativa do próprio filme) está impregnado daquele cunho pessoal que faz dele um criminoso digno até aos olhos da polícia que, perplexa com a sua perseverança, somente por via de um engodo que tudo e todos precipita, alcança relativa eficiência. Saindo como único vencedor/vencido o código de valores do perigoso Gus sobre tudo o resto.
Estas são as linhas de um filme policial de nível acima do aceitável, levando o seu tempo, avanços e retrocessos, apresentando personagens, fornecendo meandros esporádicos, cuidadosamente filtrado numa aura vintage mas sem caír na tentação da presunção. É sobretudo pela humildade de se limitar a contar uma estória de um homem em face dos dilemas honra/pragmatismo, valores/sobrevivência que merece os aplausos. Isto e o facto de o fazer com uma pintarola de se lhe tirar o chapéu. Senão repare-se: os primeiros 5 minutos em que se observa a evasão de Gus são de uma beleza incontestável ainda que a realização haja refreado certos tiques egocêntricos que espreitam num ou noutro lugar, porém aceitáveis. Há um certo culto da água das chuvas sobre o pavimento, tanto na exploração da sua imagem como na sonoplastia em torno delas. Somada à supra mencionada aura vintage proporciona momentos de suspensão dramática 100% hedonistas e inebriantes, o que num policial dos 60's com ladrões, golpes, tramas e intrigas é notável! Os americanos podem rodar filmes de gangsters à parva, mas não sabem fazer coisas destas, faltam-lhes as idas aos museus do Velho Continente.
Além destes momentos de virtuosismo europeu, a realização (que viu quase tantos filmes com tiroteios entre a escumalha criminosa como Tarantino, só que em salas manhosas de cidades com nomes pouco pronunciáveis ou das quais poucos ouviram falar) cumpre a missão com um "bom" em caps lock e em estilo negrito. O cast vai pela mesma bitola receber exactamente a mesma classificação (sim, até Eric Cantona convence!). Daniel Auteuil, transporta sobre os seus ombros todo o peso narrativo/trágico sem nunca ceder ou mesmo parecer sentir tal incumbência, Monica Bellucci, é igual a si mesma: a Senhora imponentemente feminina que ainda assim desconhece por absoluto a palavra cliché ou o termo "lugares comuns" e Michel Blanc consegue interpretar à altura a mais excelsa personagem - o genial comissário Blot, que após o primeiro assassinato protagoniza a melhor cena de todo o filme, relatando os testemunhos que a polícia está prestes a receber de cada um daqueles que presenciou o crime (nenhum deles dizendo a verdade) e sob a fina película de água (qual sobra pluviosa sobre o pavimento do monólogo?...) que é toda aquela ironia experimentada e sagaz, Blot diz telepaticamente ao espectador "Eu sei o que tu viste" enquanto que aos seus interlocutores passa antes o recado "Não perco tempo com as vossas mentiras, já vi o que tinha a ver mas ainda assim a idade e o posto dão-me estes minutos de um protagonismo que gosto de assinalar com estilo".
"Le Deuxième Souffle" não é, nem de longe, nem de perto, a melhor das longas metragens. Apesar daquele monólogo 5* do comissário Blot o resto não acompanha, e a realização faz muito pelo argumento. Lembrem-se as cenas do duplo homicídio dentro de um carro a alta velocidade, m.o. de Gus, e tudo quanto se rodou indoors na noite do golpe: muito melhor a realização do que o argumento propriamente dito. Há em tudo quanto aqui foi dito o déficit de conhecimento do filme original, pelo que se avalia a presente remake sem que em nada se considere o 1º. Ainda assim está à altura do tempo e do dinheiro do bilhete e, gastos os dois, deixa um saldo francamente positivo.

Classificação - 3,5 Estrelas Em 5

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1 Comentários

  1. Céus, como é possível escrever sobre este filme descrevendo-o apenas como um "remake do homónimo de '66", sem referir uma vez que seja que o filme original é uma das obras maiores de Jean-Pierre Melville?! Como é possível aspirar a fazer 'crítica de cinema' sem conhecer um autor cujos primeiros filmes (por exemplo, "Les Enfants Terribles") influenciaram a Nouvelle Vague, e os últimos foram confessamente modelos para Brian de Palma, John Woo, Quentin Tarantino, etc etc etc?!
    Ai ai ai...

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