Crítica - Contos Proibidos do Marquês de Sade - Quills (2000)

Realizado por Philip Kaufman
Com Geofrrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix, Michael Caine, Stephen Moye

O ser humano pode provocar o poder da perversão através da escrita? Eis que a literatura, em sua verve mais ousada com dotes erotizados, há por arder de requinte de luxúria que proporciona um orgasmo para quem lê. Contos Proibidos do Marquês de Sade ficciona uma inquietante trajetória real de um homem que abalou as estruturas da sociedade por expressar sua criatividade numa escrita pornográfica. A produção, dirigida com talento por Philip Kaufman, com roteiro de Doug Wright, retrata diversos contextos presentes na sociedade francesa do final do século XVII, no período de governo monárquico de Napoleão Bonaparte: a euforia dos rigores tradicionais, a falsa moralidade e, através do personagem que o filme articula sua narrativa, a evidência da sexualidade que desestrutura os ditames da religião. A história enfoca os últimos anos de vida do escritor infame Marquês de Sade (Geoffrey Rush), encarcerado num sanatório em Charenton por desafiar a autoridade da Igreja quanto a do Estado, por conta de seus escritos recheados de citações eróticas. Considerado como uma afronta à sociedade por criar textos além do limite da sordidez pornográfica, foi retirado da esfera social para não mais chocar todos com seus textos e poesias de sensos libidinosos. Isolado no sanatório, o sexual prolífero Sade não desistiu de escrever - auxiliado por Madeleine (Kate Winslet), uma camareira que mantém um elo de forte atração e amizade, consegue publicar seus contos pervertidos fora do local que se encontra. Através de sua ajuda - ela entrega os textos a um editor que direciona a um prelo - o Marquês consegue manter sua literatura sexual na atividade. Rapidamente publicados, seus textos atraem o povo que aprova com tamanha euforia - além de ferir a pseudo-moralidade da Igreja que se rebela contra ele, irada. Como fazer com que essa sexualidade literária atenue de vez? É então que o Dr. Royer (Michael Caine), um controverso médico e de intenções duvidosas, entra em cena para impedir que o Marquês continue espalhando sua obscenidade. Além disso, a trajetória de sexualidade literária do Marquês há de ser repreendida pelo jovem padre Abbe Coulmier (Joaquin Phoenix) que, por sua vez, esconde dúvidas e desejos ocultos.

O filme mostra como a literatura tem o poder de causar catarses, mudanças e também reflexões - é capaz de lubrificar as mentes das pessoas com artifícios do prazer, induz e aflora a sexualidade, instiga com a sensualidade. Corrompe, fere e fascina. E mostra também como as pessoas são propícias às influências da leitura – de como, às vezes, guardam segredos dentro de si mesmas e, ao ler, conseguem ter prazer pelo simples fato de se identificarem com o que está idealizado no texto. Por isso, muitas pessoas que se mascaram socialmente, com a carapuça da pseudo moralidade, quase sempre, dentro de quatro paredes, apresentam um lado sádico e pervertido sexualmente - por sinal, o termo "sadismo", foi criado em função do próprio Marquês de Sade de acordo com suas ideologias sexualizadas. Qual conceito da imoralidade? Será que em Sade existia, de fato, um modelo de perversão? Ou ele apenas narrava o que se escondia por trás das mentes e das vidas de cada pessoa? Será o sexo - na sua amplitude e estranheza - algo a ser segredado sem ser exposto com tanta clareza? Sade, obviamente, mostrava a sociedade como ela era - pessoas que traiam, sujeitava-se às práticas secretas de luxúrias, aos sexos furtivos e que consumiam - como ainda hoje o fazem - o desejo pelo próprio orgasmo. Sendo ele através de práticas sentimentais ou não. Afinal, ainda que nem todos acreditem, sexo pode ser dissociado do senso de sentimento - talvez, uma consequência da paixão?

E, no filme, o irônico e melodramático, por vezes doloroso, roteiro exerce uma reflexão sobre um homem que provocou todo um abalo social devido à sua mente que elucubrava tormentos da sexualidade nas suas mais variadas formas. Os contos de Sade faziam sucesso pelo simples fato de serem tangíveis, reais e sinceros: eram personagens como qualquer um, nos mais absurdos segredos da intimidade, dos desejos inconfessáveis. Em meio à Revolução Francesa, ele reformulou sentidos e quebrou tabus ao explorar a sexualidade na sua verdadeira natureza humana, sem artifícios da formalidade, ainda que seu estilo não seja totalmente vulgar - apenas, ele não tolerava pudores. E como um poeta não convencional pôde, durante tanto tempo, permanecer preso só por ter escrito sobre o lado negro humano? A sociedade é predatória, não se pode compreender. Até que ponto se pode conter a liberdade de expressão? Marquês de Sade teve que enfrentar a todos - é doloroso vê-lo, privado do ato de escrever, ter que usar de métodos extremos para não desistir. Ao ter sua pena retirada, escreve com o vinho; retirado o vinho, escreve com o próprio sangue. O sufoco atinge o ápice diante da total privação: sem qualquer instrumento porventura útil à escrita, usa as fezes para escrever seu último conto nas paredes da masmorra onde fora deixado. Não há nada que vete a veia literária de um artista. A escrita era como a liberdade, Sade tinha o tesão em compartilhar seus textos eróticos com um público ávido pela comunhão da obscenidade sexual. Mas, seriam seus textos obscenos demais para serem lidos? Sade escreveu sobre os apetites mais primitivos humanos, além de desmascarar todos os limites sexuais. Com uma prosa tão incendiária, conseguiu também ferir a sociedade acostumada nas tradições da hipocrisia.

Além de costurar a ousadia da infâmia sexual através de um personagem politicamente incorreto - o filme desnuda sensos da artificial moralidade mascarada ao colocar personagens em conflitos com seus próprios desejos e obscuridade. O tema do filme é sensual, agressivo e até cruel. Há o padre Abbe que nega seus desejos e anseios terrenos sob as próprias vestes da batina que oculta seu tesão pela camareira Madeleine - como estar dividido entre o amor e as próprias imposições que a fé aprisiona?; Madeleine representa a feminilidade no filme, permeia entre o fascínio do prazer em ler as perversões literárias do Marquês e inibe a atração que nutre pelo padre; o médico Royer que tem um vício em torturar seus pacientes e condenar a expressividade do Marquês, mas que dentro de sua casa esconde seus hábitos sexuais contra sua esposa menor de idade. O filme ainda prisma pelas necessidades dos desejos carnais e das próprias vontades - mas, é nítido o quão ansiosos por sexo acabam sendo todos os personagens no enredo. O tom desbotado sutilmente da fotografia de Rogier Stoffers é um instigante aspecto visual; figurinos competentes e uma trilha sonora de Stephen Warbeck bastante marcante conceituam uma boa atmosfera à película. Mais que um incentivador da literatura sexual, Sade foi um libertário promíscuo a favor da euforia dos vícios do corpo. Um pequeno filme que serve como manifesto sobre o ato de liberdade de expressão – exemplo de reflexão sobre a moralidade e mostra como, às vezes, nem todo prazer há de ser convencional.

Classificação – 4 Estrelas Em 5

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