Uma Hora Com Melissa Leo - 2ª Parte. A Nossa Entrevista Com a Vencedora do Óscar de Melhor Atriz Secundária

O prazer demonstrado pela Melissa em relação à sua profissão levou-me a perguntar a inevitável questão: “ O que sentiu ao vencer um Óscar da Academia?”. A sua resposta, como previa, não surpreendeu e deu a entender que a conquista do Óscar de Melhor Atriz Secundária em 2011 pelo filme “The Fighter” foi, para a Melissa, um dos pontos altos da sua carreira, ou segundo as suas palavras, “Uma experiência maravilhosa. É um prémio que estimo muito e que considero muito prestigiante. É, aliás, um dos prémios mais prestigiados e badalados do mundo, porque, se pensarmos bem, toda a gente sabe quem é que ganhou um Óscar este ano, mas será que sabem quem ganhou o Prémio Nobel da Paz ou da Economia? É por causa deste mediatismo que é tão importante para o público e, acima de tudo, para qualquer pessoa que tenha a sorte de ganhar um”. Esta inevitável questão levou-nos a entrar num diálogo sobre dois dos seus principais filmes dos últimos anos, os dramas “Frozen River”, de Courtney Hunt, e “The Fighter”, de David O. Russell. Eu fiquei a saber que, para a Melissa, estes dois filmes estão interligados a um nível pessoal e profissional, já que me confessou que foi convidada a fazer o “The Fighter” por causa do “Frozen River”, pelo qual foi nomeada ao Óscar de Melhor Atriz Principal em 2009, tendo na altura perdido o Óscar para Kate Winslet. De acordo com a Melissa, “O “Fronzen River” abriu-me muitas portas. Foi por causa da minha nomeação ao Óscar de Melhor Atriz Principal pelo “Frozen River” que consegui o papel de Alice Ward no “The Fighter”. Foi essa honra que me pôs no radar dos produtores do filme, que pensaram logo em mim para esse complicado papel. Eles disseram-me que sem o “Frozen River”, muito provavelmente, teriam pensado em outras atrizes”. É claro que esta revelação levou-me a perguntar-lhe como é que correram os primeiros contatos e, por fim, como é que ela acabou por ser contratada. Para minha surpresa, recebi uma resposta muito bem elaborada e pessoal que retratou todos os passos importantes do seu casting, que “começou com breves contatos com os produtores e, passado umas semanas, encontrei-me com o realizador David O. Russell, que me assegurou que eu era a pessoa ideal para interpretar a Alice. Ele até me assegurou, que a Alice é a personagem principal do filme, sendo ainda mais importante que o Micky Ward ou o Dicky Eklund. O David convenceu-me a participar no filme, apesar de, tecnicamente, esta escolha não fazer muito sentido, porque, se formos a ver, a minha idade diverge muito da idade que a Alice tinha na altura. Não fazia sentido interpretar a mãe de dois homens já tão adultos. Se fosse mãe deles, na vida real, teria que os ter tido aos seis anos. Faz sentido? Eu até lhe disse que havia outras atrizes mais velhas que poderiam enquadrar-se melhor neste papel, e que algumas até tinham mais experiência que eu, mas ele disse-me abertamente que eu era a Alice dele. Eu acreditei e aceitei fazer o filme e ainda bem que aceitei”.
Ficou bem patente, pelas suas palavras, que a Melissa teve uma química instantânea com o David O. Russell, mas rapidamente me apercebi que esta relação não foi assim tão perfeita, já que ela confessou-me que “nunca teve grandes direções sobre o desenvolvimento e rumo da história. Isto é um problema, porque a profissão de ator é muito solitária. Pode não parecer, mas estamos sempre muito sozinhos durante as filmagens e, se não temos um apoio forte do nosso diretor, então o nosso trabalho sofre bastante com essa solidão. É um trabalho muito difícil interpretar  uma personagem e assumir uma faceta completamente diferente, ainda para mais, quando temos de assumir uma personagem tão forte como a Alice. Esta ausência de contacto dividiu-me. Eu não sabia se deveria estar sempre a pedir direções e dar opiniões de forma muito educada, ou se deveria estar permanentemente na pele da personagem e dar opiniões fortes que ajudassem a construir a personagem, tal como a imagino. Eu acabei por escolher esta última opção, porque queria estar sempre na pele da personagem porque, a qualquer momento, poderia começar a gravar e assim já estava dentro da personagem. Este método é muito mais fácil, coeso e realista. Eu quero estar próxima da personagem e quero fazer um bom trabalho. Não estou ali para fazer amigos de longa data. Estou ali para fazer um bom trabalho, e é assim que o quero fazer. Se estamos a interpretar uma personagem muito diferente de nós, então temos que fingir e atuar muito para vender essa personagem. O essencial é ter um realizador compreensivo que entenda que, mesmo quando não estamos a gravar, estamos a agir de forma diferente, porque já estamos dentro da personagem e estamos em sintonia com ela. A minha personagem era ousada e muito direta, mas eu não sou assim. O problema é que o Russell, infelizmente, não entendeu que, mesmo fora do set, estava sempre a interiorizar a personagem. O facto de ele não ter compreendido este método acabou por dificultar o meu trabalho”.
Eu percebi, no entanto, que esta pequena crítica ao David O. Russell não passou de uma crítica construtiva, já que é normal cada um ter o seu próprio método de trabalho e a Melissa Leo é, sem dúvida, uma atriz muito metódica que criou uma relação muito especial com a sua personagem, talvez porque teve a oportunidade de conhecer e desenvolver um certa relação de amizade com a própria Alice Ward que, no primeiro encontro com a atriz, revelou-lhe que “estava um bocado nervosa com o resultado final do “The Fighter”, porque no passado a sua família já tinha sido humilhada em praça pública por um documentário que a HBO fez sobre o Dick Eklund”. Esta má experiência, que é retratada ao pormenor pelo filme, assustou um pouco a Família Ward que, presumo, também não deve ter apreciado ver certos momentos do filme, que passa uma imagem menos boa da Alice e do Dick. Já que a Melissa teve a oportunidade de conhecer pessoalmente a Alice Ward, aproveitei para lhe perguntar se há alguma verdade na conturbada relação que o filme retrata entre a Alice e o Micky. Esta pergunta mexeu um pouco com ela, que me reafirmou que “A Alice foi uma pessoa fantástica. Ela nunca gostou mais de um filho que o outro. Ela foi uma boa mãe. Se calhar alguém quis, por qualquer razão, fazer um filme sobre uma mãe que tem claras preferências e que nutre mais carinho por um determinado filho, mas na vida real, a verdadeira Alice apenas optou por dar mais atenção ao filho que mais precisava. O Micky foi, desde cedo, uma criança muito responsável e capaz de fazer tudo sozinho. Ele tem um pai diferente do Dick. A sua genética é diferente da do seu meio-irmão, que desde que nasceu sempre foi uma criança problemática e muito complicada que, segundo a Alice me contou, sempre se portou mal e até chegou a destruir a casa deles quando tinha apenas três anos. Foi por ele ser tão difícil que, um dia, a Alice levou-o até ao ginásio e pediu ajuda aos treinadores para ajudarem o Dick a lidar com toda a sua raiva. Ele entrou no ringue e foi um grande sucesso, tendo demonstrado, desde cedo, um talento nato para o boxe. Para além do Micky e do Dick, a Alice teve mais sete filhas e, por isso, teve que lidar com todos estes filhos e, claro, não deu tanta atenção ao Micky, que era o único que se aguentava sozinho. Ela confiava mais nele. O Micky é um homem fantástico. Ele ainda hoje toma conta da família dele, e foi ele que tomou conta do funeral da Alice”. 
Eu não resisti a dizer-lhe que, da primeira vez que vi o filme, achei que a Alice era a grande vilã da história, mas ela rapidamente criticou a minha posição e defendeu a sua personagem: “Eu não considero a Alice uma vilã e nunca a considerei. O filme pode dar essa ideia, mas eu não concordo nada. Eu sou mãe e acho que é impossível para uma mãe dar mais amor a um filho que a outro. Eu conheci a Alice e ela não é nenhuma vilã. Ela foi uma heroína. A própria imprensa nos Estados Unidos da América também disse, na altura, que eu interpretei uma pessoa má, mas eu sempre os contradisse e não os deixei publicar isso, porque ela não é uma má pessoa, muito pelo contrário. Temos que ver as coisas na perspetiva da Alice, que era uma mulher que estava sozinha no meio de um mundo de homens. Para além de ser mãe, a Alice era também a agente do Dick. Ela envolveu-se muito nesse competitivo mundo cheio de lutas e homens. Ela confessou-me que foi muito difícil habituar-se a esse mundo, mas, no final, prevaleceu a esta tarefa quase impossível. É claro que sempre que um combate do Dick começava, ela deixava rapidamente de ser a agente dele e passava a ser a sua mãe. Durante os combates, a Alice estava sempre com o coração nas mãos, porque via o seu filho ser amaçado e atacado. Como ela percebia muito de boxe, também sabia quando ele estava a ganhar ou a perder, por isso era muito difícil para ela suportar e aguentar as duas facetas, mas lá conseguiu”
Ao ouvir a Melissa a falar da Alice lembrei-me de imediato da cena final de “The Fighter”, onde a Alice mostra uma emoção nunca antes vista em relação ao Micky durante o seu combate. A Melissa confessou-me que essa cena final, que, pela primeira vez, demonstra a verdadeira natureza da relação da Alice com ao Micky, nunca existiu na vida real, porque “a Alice nunca viu o combate ao vivo, mas o David criou esta cena para mostrar essa emoção. É por isso que ela é muito importante, apesar de ser uma das menos factuais do filme, porque mostra que ela não é má e que, por detrás da Família Ward, há uma grande história de amor e respeito entre a Alice e seus filhos. Essa cena humaniza a Alice”. Esta aproximação entre a Alice e a Melissa levou-me a perguntar se considerava a sua Alice a personagem favorita da sua carreira, mas é claro que ela me disse que não porque ela é “incapaz de escolher uma, mas foi certamente uma das mais importantes da minha carreira até ao momento. É muito importante porque foi um papel muito interessante, e porque conheci a pessoa em causa. É um trabalho muito mais difícil dar vida a uma personagem real, do que a uma personagem fictícia”. Eu perguntei-lhe muito diretamente se a Alice conseguiu ver o filme e se aprovou a sua história. Um pouco hesitante, a Melissa lá disse que “a Alice gostou do filme a aprovou a minha performance. Ela até me disse que gostou de ver a sua pessoa ser interpretada por alguém tão jovem porque, quando filmamos o filme, ela estava quase no fim da sua vida”. Para concluir a nossa conversa sobre este filme biográfico, a Melissa decidiu contar-me o que aconteceu durante seu último encontro com a Alice Ward: “Quando o filme foi lançado eu visitei-a e disse-lhe que já andavam a dizer que eu poderia ser nomeada ao Óscar, e disse-lhe que se isso acontecesse eu gostaria que ela viesse comigo aos Óscares, mas infelizmente não pude concretizar esta promessa porque ela morreu antes. O Óscar foi um tributo à Alice e, de certa forma, também lhe devo muito o Óscar. Eu ganhei por causa dela, não apenas num sentido metafísico, mas também num sentido prático, porque sem as suas direções nunca teria tido um papel tão bom. Ela mostrou-me muitas coisas e ajudou-me a ser a verdadeira Alice. O meu trabalho é fingir e, se não tenho que fingir muito, como foi o caso, então o meu trabalho torna-se mais fácil. Ao longo da minha formação aprendi muitos truques, mas quando se tem uma inspiração ao vivo é sempre muito mais fácil interpretar a personagem e não ter que atuar com tantos truques”.
No meio de tanta conversa sobre “The Fighter” acabamos por não falar muito de “Frozen River”, que, como já tiveram a oportunidade de ler, foi o filme que levou, pela primeira vez, a Melissa até aos Óscares mas, na altura, isto chocou-a bastante: “Eu nunca esperei ser nomeada pelo “Frozen River”, até porque pensei que ninguém o tivesse visto. Eu fiz o filme pela experiência. Eu adoro o que faço, mas atuar nem sempre é fácil e é muito exaustivo. Eu já tinha assumido o papel numa curta, por isso senti-me na obrigação de o interpretar na longa”. Já sobre o filme,  confessou-me que é “um filme que merece ser visto, especialmente no contexto atual. Por causa das crescentes dificuldades financeiras, muitos jovens ou experientes realizadores costumam perguntar-me “como podemos fazer um filme com tão pouco dinheiro?”, ora o “Frozen River” mostra que é possível fazer um bom filme quase sem dinheiro e meios nenhuns. O orçamento do “Frozen River” era minúsculo e, por isso, não podia haver nenhum desperdício. Todos tinham que ser mais criativos. Eu até acho que, às vezes, ter menos dinheiro é uma bênção, porque temos de ser mais cuidados e criteriosos, algo que já não acontece se tivermos mais verbas. Nos filmes de grande orçamento perde-se muito tempo e recursos para, muitas vezes, ter um mau resultado final. No “Frozen River” nada disso aconteceu. Está muito bem feito e teve uma enorme aceitação. Tenho que o considerar um milagre, porque teve quase para nem ser distribuído e, no final, contribuiu muito para a minha carreira”. 
Já no fim da nossa descontraída reunião falamos sobre a sempre instável relação entre o ator e o realizador que, por vezes, pode ser um bocado complicada. A Melissa falou um pouco da sua experiência pessoal: “Quando interpreto uma personagem tenho que esvaziar o meu corpo da minha alma, para assim dar lugar à alma da personagem e, pelo meio, entrego a minha alma ao meu realizador. Esta é a melhor forma de descrever a relação entre um ator e o seu realizador. A confiança que reina entre estas duas partes é enorme. Para um filme resultar, então o ator tem de ter uma boa relação com o realizador. É claro que isto, às vezes, é difícil, porque os realizadores e os atores não se dão muito bem, talvez por causa dos egos, mas se queres falar sobre egos tens que falar com outros atores ou realizadores que te podem dizer como é trabalhar quando se tem um ego enorme. Eu deixo sempre o meu ego em casa, porque sou uma pessoa que não presta nenhuma atenção à vaidade ou à fama”. Foi assim que acabou oficialmente a minha hora com a atriz Melissa Leo que, no final, acabou por me pedir para dizer a todos os portugueses que gostou muito do nosso país, e que espera voltar um dia para mais uma visita. É claro que esta entrevistas é só uma parte da nossa conversa que, como devem calcular, foi demasiado comprida para ser transcrita para texto, mas os principais momentos e citações foram aqui bem vincados. Há coisas que ficarão só entre nós, até porque foram impressões pessoais sobre a indústria do cinema e seu funcionamento. Para a história fica uma boa conversa e a minha consolidação como fã desta incrível atriz. 

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