O Queer Lisboa 26 anunciou a programa repleto de grandes nomes e disposto a "moldar as nossas memórias". "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues, documentários sobre Esther Newton e Patricia Highsmith, e "Los Agitadores", estão entre os destaques da 26.ª edição do festival, que decorre de 16 a 24 de setembro. Para além dos títulos de abertura e encerramento previamente anunciados – Fogo-Fátuo, de João Pedro Rodrigues e Esther Newton Made Me Gay, de Jean Carlomusto -, o festival apresenta os mais recentes filmes de Alain Guiraudie, Catherine Corsini, Yann Gonzalez, Leonardo Brzezicki ou Sébastien Lifshitz, assim como a longa-metragem paquistanesa, Joyland, duplamente premiada na passada edição do Festival de Cannes. O festival exibe ainda, em Sessão Especial, a estreia do mais recente filme do realizador argentino Marco Berger, Los Agitadores, uma reflexão brutal sobre a masculinidade tóxica.
A programação do Queer Lisboa 26 volta a fazer-nos refletir sobre as importantes questões ligadas à memória, individual e coletiva. Negar a memória é desonrar e não reconhecer quem permitiu que estivéssemos onde estamos hoje. É um exercício perigoso de negacionismo que, a História continua a ensinar-nos, pode ter consequências extremas. Negar a memória e os nossos antecessores porque eles não seguiram conceções que abraçamos hoje de sexo, género, sexualidade, identidade ou comunidade, é irracional. E é um discurso que não raras vezes vem do privilégio. Um privilégio falsamente disfarçado de marginal e subversivo. O “queer”, sendo um conceito que parece nunca estar lá plenamente, estar sempre em falta, é porque ele é alimentado pelo passado e as suas muitas construções, e porque ele é sempre uma simulação de futuro, no qual projetamos uma vontade utópica. Nunca é exatamente “presente”. É uma promessa para a qual temos de trabalhar juntes. E isto não se faz sem memória – e, já agora, nem sem empatia. Gestos de memória e de celebração, a presente programação evoca e “inventa” necessários passados, pensa e problematiza o nosso presente, e projeta-nos no futuro.
Na Competição de Longas-Metragens, que será avaliada por um júri composto pela escritora e dramaturga Cláudia Lucas Chéu, pelo ator Nuno Nolasco e pela realizadora e argumentista Rita Azevedo Gomes, destaque para a cinematografia brasileira com os novos trabalhos de Gustavo Vinagre e Fábio Leal. Após terem vencido em conjunto o Prémio de Melhor Filme no Queer Porto 7, em 2021, regressam desta vez à edição lisboeta do festival, o primeiro para apresentar Três Tigres Tristes, uma deambulação, ora crua, ora surrealista, de uma juventude à procura de si mesma, numa inclemente e distópica São Paulo (vencedor do Teddy Award na última edição da Berlinale), e, de Fábio Leal, Seguindo Todos os Protocolos, que narra o abismo mental de quem quer cumprir as normas de saúde prescritas, mas também ter relações sexuais, durante a pandemia. O realizador espanhol Adrián Silvestre regressa igualmente ao festival - após sair vencedor desta competição em 2016 e merecedor de uma menção especial pelo seu documentário no ano passado -, desta feita com o híbrido Mi Vacío y Yo, um dos filmes mais celebrados em festivais de cinema queer nesta temporada, e onde equilibra com humor e pungência a história de Raphi, que, de pasmo em pasmo, se vai construindo como mulher. A longa-metragem paquistanesa Joyland, de Saim Sadiq, é certamente outro dos títulos mais relevantes desta edição. Merecedor de dupla premiação em Cannes (entre elas a Queer Palm), o filme transporta-nos para um ambiente aparentemente irreconciliável na cidade de Lahore, onde a família tradicional e varonil colide com a exuberante promessa de uma comunidade trans em crescente afirmação. A Competição acolhe igualmente o regresso ao grande ecrã do cineasta argentino Leonardo Brzezicki, com Errante Corazón, protagonizado por um irrepreensível Leonardo Sbaraglia; assim como a ficção finlandesa Girl Picture, que marca a estreia da realizadora Alli Haapasalo, e que nos fala sobre a emergência do amor e da sexualidade na vida de três raparigas adolescentes. Poucos dias depois de ser exibido no São Jorge, este título estará também disponível na Filmin Portugal. Estarão presentes no festival Esther Rollande, atriz da longa-metragem francesa, Les meilleurs, de Marion Desseigne Ravel; assim como Adrián Silvestre e Raphaëlle Peréz, realizador e atriz de Mi Vacío y Yo (a presença de Adrián Silvestre e Raphaëlle Pérez em Lisboa, assim como a exibição do seu filme, foram possíveis graças ao apoio do Programa de Internacionalización de la Cultura Española - PICE, da Acción Cultural Española na sua modalidade de “Movilidad”).
Na Competição de Documentários, o júri será composto pela realizadora e tradutora Joana Frazão, pela autora-realizadora Nathalie Mansoux, e por Rui Madruga, produtor na direção de Desenvolvimento de Conteúdos da RTP. Esta secção é representativa das revoluções, individuais e coletivas, que continuam a marcar a resiliência da comunidade LGBTQI+. Desde histórias pessoais onde acedemos, em detalhe, aos passos necessários para a descoberta, transformação e à própria sobrevivência, até aos registos de corpos e vozes que encontram possibilidades de ação na esfera do público e em conjunto. O ativismo, particularmente focado na América do Sul, é um dos pontos fortes desta secção este ano. Em Corpolítica, Pedro Henrique França acompanha as candidaturas de pessoas LGBTQI+ nas eleições de 2020, no Brasil, demonstrando as dificuldades que enfrentam num panorama político de extrema-direita; já Nuestros Cuerpos Son Sus Campos de Batalla, de Isabelle Solas, regista os esforços feitos pela comunidade trans na Argentina para uma reeducação social. Espaço também nesta secção para Soy Niño, um impactante retrato sobre o processo de transição do jovem chileno Bastian pela mão da sua prima, a realizadora Lorena Zilleruelo, presenteando-nos com um dos mais valiosos registos fílmicos recentes sobre crianças e adolescentes trans. De salientar ainda: Ardente·x·s, onde Patrick Muroni documenta a evolução de um coletivo de mulheres e pessoas queer cujo manifesto propõe pensar, discutir e reformular a produção de conteúdos pornográficos; e Framing Agnes, com um elenco composto exclusivamente por pessoas trans - tal como o seu realizador Chase Joynt -, que reconstitui a vida desta comunidade nos anos 50, nos EUA. Em Lisboa, estarão presentes Patrick Muroni, assim como Pedro Henrique França.
Os filmes da Competição de Melhor Curta-Metragem, assim como da Competição de Curtas-Metragens de Escola Europeias “In My Shorts”, irão este ano ser avaliados por Rodrigo Díaz, produtore chileno, pelo fotógrafo Rui Palma, e pela diretora e programadora do festival Shortcutz Lisboa, Sandra de Almeida. Amplo leque do espectro queer na seleção de curtas deste ano e, de novo, destaque para filmes que ampliam o discurso do que é, deveria ou poderia ser queer, graças a radicais linhas de fuga, a atrevidos subterfúgios metafóricos, e ao uso, em definitivo, de uma linguagem cinematográfica que se sabe tanto ferramenta política como arma de experimentação estética. Sob Influência, de Ricardo Branco, e Uma Rapariga Imaterial, de André Godinho, são os dois filmes portugueses a concorrer ao prémio para Melhor Curta-Metragem. Dos 22 títulos que compõem esta competição, de destacar ainda o poema experimental Mars exalté, de Jean-Sébastien Chauvin, (vencedor do Teddy Award na última Berlinale); a homenagem à frequentemente silenciada contribuição das mulheres para a história do cinema Dans le silence d’une mer abyssale, de Juliette Klinke; o regresso ao Festival de Richard Squires, com The Perpetrators, uma autoficção animada sobre a construção da identidade homossexual; Insieme Insieme, do realizador brasileiro residente na Holandan Bernardo Zanotta (que compete pela terceira vez nesta secção), onde um misterioso trio toma um inocente turista em cativeiro; o perturbador The Pass, da realizadora norte-americana Pepi Ginsberg, recentemente selecionado no Festival Internacional de Cinema de Toronto, e anteriormente em Cannes, onde uma praia de cruising é palco de um tenso confronto entre duas personagens; de Joseph Wilson, chega-nos Isn't It a Beautiful World, um estilizado exercício sobre o trauma na comunidade queer, entre o experimental e o vídeo musical; e o brasileiro Uma Paciência Selvagem Me Trouxe até Aqui, de Érica Sarmet, outro filme que tem percorrido importantes festivais de cinema internacionais (como Sundance), protagonizado por Zélia Duncan. Realizadores como Sacha Amaral (Billy Boy), Maurício Chades (Colmeia), Joseph Wilson, Richard Squires, Luciënne Venner (Silent Heat), Ricardo Branco ou André Godinho estarão presentes em Lisboa para apresentarem os seus filmes.
Por seu lado, o “In My Shorts” reúne um conjunto de obras que nos revela as preocupações políticas e estéticas de uma jovem geração de cineastas. A transição entre a infância e a adolescência, a dissolução das barreiras etárias ou a celebração da identidade e das famílias escolhidas, são algumas das propostas que marcam esta seleção, composta por 12 filmes, do documentário à ficção, passando pelo experimental e a performance. O cinema nacional encontra-se representado nesta competição através do aliciante Lugar Nenhum, de Pedro Gonçalves Ribeiro, onde a faixa “Believe” de Cher serve de banda sonora para uma viagem pelas conquistas LGBTQI+ no século XXI. Diretamente da sempre atrativa secção Generation da Berlinale, chega-nos o muito maduro Le Variabili Dipendenti, no qual o jovem Lorenzo Tardella captura o momento de transição entre a infância e a adolescência, e os conflitos que resultam das primeiras manifestações do desejo. O coreográfico Chute, da realizadora suíça Nora Longatti, é outro dos títulos mais surpreendentes desta edição, pela sua dimensão performativa e pela forma como amplia o conceito de queer, a partir das noções de toque, de contacto e da necessidade de olhar/cuidar (d)o outro. Em Gangnam Beauty, Yan Tomaszewski (nome habitual em festivais de cinema de renome) apresenta-nos um comentário sobre a cultura de fãs e a idealização do corpo, através da reimaginação de um ídolo da pop coreana. No cruzamento entre a ficção e o documentário, Yến retrata o desejo de libertação de um corpo em transformação; ao passo em que The Greatest Sin propõe um retrato da comunidade ballroom e das lutas de homens negros.
No Queer Art, competição por excelência onde se exibe aquele cinema que desafia o conceito de queer, transpondo a elasticidade e complexidade do mesmo para um cinema seu espelho, dois filmes têm tido um particular impacte. Por um lado, Jerk, da coreógrafa francesa Gisèle Vienne, monólogo filmado a partir de um texto do “maldito” da literatura queer contemporânea, Dennis Cooper; e por outro, Neptune Frost, assinado a meias pela ruandesa Anisia Uzeyman e pelo músico norte-americano Saul Williams, obra surpreendente, interdisciplinar, polimórfica, todo um hino afrofuturista e pós-colonialista. Não menos impactante é Travesía Travesti, de Nicolás Videla, onde um coletivo chileno drag funde subversão política e sexual com BDSM e algum ressentimento, nesta que é uma história pessoal e política; e também o poético e requintado Ultraviolette et le gang des cracheuses de sang, no qual as cartas, fotografias e desenhos que o conceituado realizador Robin Hunzinger encontrou guardadas pela sua avó Emma, levam-nos à descoberta de Marcelle, com quem a sua avó teve uma relação nos anos 1920. Oito filmes compõem esta secção, cujo júri será composto pelo diretor artístico do festival Walk & Talk, Jesse James, pela cineasta e artista Luciana Fina, e pelo artista plástico Vasco Araújo. Da Competição Queer Art, estarão presentes em Lisboa Nicolás Videla e Olympe de G. (Une dernière fois).
Na secção Panorama, fora de competição, apresentamos os últimos trabalhos de realizadores consagrades como Sébastien Lifshitz (com a nova versão do seu celebrado Bambi, a French Woman), Yann Gonzalez (com a curta-metragem protagonizada pelo Oliver Sim dos The xx, que pretende aguçar o apetite para o lançamento do seu álbum de estreia a solo, “Hideous Bastard”), ou a última longa-metragem da realizadora francesa Catherine Corsini, La fracture, vencedora da Queer Palm em 2021. Também parte do Panorama são o mais recente filme do francês Alain Guiraudie, a comedia Viens je t'emmène, e o documentário de Eva Vitija baseado nos diários inéditos da romancista Patricia Highsmith, sendo que ambos os filmes irão estrear posteriormente na Filmin Portugal. Haverá ainda espaço para um impressionante retrato coral da comunidade queer negra nos Estados Unidos (Black as U R), e uma divertida, mas séria, reinterpretação da barbearia tradicional de uma perspetiva queer (Manscaping), entre outros filmes. Estarão presentes em Lisboa o realizador norte-americano Michael Rice (Black as U R) e o realizador brasileiro Breno Baptista (Panteras).
As Hard Nights estão de regresso ao festival, apresentando uma seleção de filmes que exploram os limites da representação da sexualidade. O foco deste ano incide em duas figuras peculiares na produção de obras explícitas: o lendário ator e realizador de pornografia gay e figura de culto dos anos 1970, Fred Halsted, com a exibição de três das suas obras mais icónicas, recentemente remasterizadas: Sextool, The Sex Garage e o já lendário LA Plays Itself que fez com que Salvador Dalí afirmasse, completamente fascinado, que “isto é nova informação para mim”; e Mahx Capacity, fundadore do estúdio AORTA films, cujos filmes propõem uma perspetiva do porno e do BDSM onde os corpos não se regem pelas padrões ditados pela indústria mainstream, nem pela sociedade heteronormativa.
Em parceria com o Centro Anti-Discriminção (CAD), um projeto conjunto de duas associações na área do VIH/sida, o GAT e a Ser+, o Queer Lisboa irá acolher a apresentação da campanha “Eu sou VIH+ e visível”, direcionada à eliminação do estigma associado à infeção pelo VIH. No Cinema São Jorge iremos acolher ainda a apresentação de dois livros, “Nós xs Inadaptadxs. Representações, Desejos e Histórias LGBTIQ na Galiza” (Coord. Daniel Amarelo, Através Editora) e “A Defunción dos Sexos: Disidentes Sexuais na Galiza Contemporánea” (Daniela Ferrández Pérez, Ed. Xerais), duas importantes obras e que são o reflexo da profícua produção nos Estudos Queer na nossa vizinha Galiza.
Na Cinemateca Portuguesa – e conforme já anunciado anteriormente -, o festival apresenta a retrospetiva “Notes on Camp”: o Delírio Drag do Gay Girls Riding Club, uma incursão pelo universo “camp” através da obra cinematográfica do coletivo que dá título ao ciclo, formado em finais dos anos 1950 por um grupo de homens que se juntava aos domingos para andar a cavalo, e que começou a organizar festas drag (as Annual Halloween Balls), que persistiram até finais da década de 1980. No início da década de 1960, o coletivo começa a produzir filmes que são o “camp” na sua essência: paródias a clássicos de cinema de Hollywood. O primeiro filme do GGRC julga-se irremediavelmente desaparecido: Suddenly, Last Sunday, de 1962, citação direta ao Suddenly, Last Summer (1959), de Joseph L. Mankiewicz, escrito a partir da seminal peça de Tennessee Williams. Seguiu-se outra curta-metragem, datada do mesmo ano, e já presente nesta retrospetiva, o Always on Sunday, uma paródia ao filme grego Never on Sunday (1960), de Jules Dassin. Em 1963, o coletivo roda What Really Happened to Baby Jane, filme apresentado apenas um par de meses após a estreia em sala de What Ever Happened to Baby Jane? (1962). Também de 1963 é o The Roman Springs on Mr. Stone, uma paródia drag ao The Roman Spring of Mrs. Stone (1961), de José Quintero. O primeiro título do GGRC que não é referência direta a nenhum filme específico surge em 1967, com The Spy on the Fly, uma sátira aos primeiros filmes da saga James Bond. Em 1972 surge a primeira e única longa-metragem do coletivo, All about Alice, alusão direta ao All about Eve (1950), de Joseph L. Mankiewicz, protagonizado por Bette Davis e Anne Baxter. E porque um programa sobre o “camp” não poderia deixar de assinalar essa figura mítica e controversa que foi a atriz Mae West, apresentamos ainda – em estreia na Cinemateca Portuguesa -, o filme Goin’ to Town (1935), de Alexander Hall.
A abertura do festival ficará a cargo da última longa-metragem de João Pedro Rodrigues, Fogo-Fátuo, que teve a sua estreia na Quinzena dos Realizadores da passada edição do Festival de Cannes, e que desde então tem percorrido diversos festivais pelo mundo e já conheceu estreia comercial em França. Esta inusitada comédia erótica em formato musical atravessa alguns dos mitos fundadores do imaginário coletivo português, inscrevendo-lhes uma boa dose de sátira e fantasia. Nesta história, um jovem príncipe troca a corte por um quartel de bombeiros com a missão de libertar Portugal dos fogos que flagelam as suas terras, acabando por se apaixonar por um bombeiro negro que o acolhe. Temas tão díspares como as mudanças climáticas, a política republicana e a história colonial encontram neste filme ligações improváveis.
Já para a sessão de encerramento, o filme escolhido será Esther Newton Made Me Gay, da realizadora Jean Carlomusto, documentário sobre a vida de Esther Newton, importante antropóloga social, ativista lésbica, e precursora dos Estudos de Género e da Teoria Queer. Responsável por trazer uma nova abordagem que desafiou as convenções de género e sexualidade presentes nos métodos antropológicos, o seu impacto fez-se sentir, tanto nas esferas ligadas ao ativismo, como na academia. Em paralelo à história da sua vida, o filme oferece um olhar às vivências LGBTQI+ desde a década de 1950, acompanhando o movimento de libertação das mulheres, o feminismo lésbico, a cultura drag e a construção de uma identidade butch.
O Queer Lisboa 26 apresenta no total 87 filmes, de 27 países diferentes e conta para a presente edição com um orçamento de 130.000€, tendo como principais apoios institucionais a Câmara Municipal de Lisboa / EGEAC e o ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual, assim como importantes apoios da FLAD – Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
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